Redenção de Fogo (Conto)


O velho Paulo, não tão velho de verdade quanto aparenta, vivendo na rua por conta de desventuras do passado. Passou alguns anos preso por furto. Viu sua mulher e filhos serem assassinados por dívidas criadas ao tentar sustentá-los. Sua fuga da vida foi impedida pelo medo natural de ter que encarar no inferno suas más decisões.
Passou alguns meses na rua buscando uma forma de pagar pelos seus erros. Suas tentativas sempre foram mal vistas, sempre sendo cada vez mais acusado de intenções malignas, mesmo sabendo que suas intenções sempre foram boas.
Nesta noite ele não pôde beber, passou o dia sem comer, sem um trocado qualquer conquistado. Estava praticamente desistindo de lutar por sua alma. Ficou ali deitado na calçada no meio da noite se perguntando o porque de não ter a merecida sorte de ser alvo daqueles arruaceiros que eliminam mendigos por diversão. Ele, que acima de qualquer mendigo, tinha certeza de que merecia punições maiores.
Um carro simples, azul, ele viu. Não notou seu modelo, pouco importava. Não olhou para quem dirigia, quem liga? Torcia para que fosse um bêbado descuidado e o atropelasse. Mas o carro vagava educadamente pela rua. A rua vazia, o silêncio e a escuridão bloqueando a vida daquela quadra. Não é uma rua de trânsito intenso, sempre com buracos, mendigos, ladrões.
Mas seus olhos estalaram ao ouvir o derrapar de pneus. Aquele pare, o maldito pare daquela rua que nunca é respeitado. Toda semana um acidente estúpido, toda semana carros quebrados e pessoas nervosas por causa de outras pessoas estúpidas. Mas não esta noite. Esta noite o impactou causou um estrondo muito diferente, muito forte, muito cheio de gritos.
O carro prata que atravessou o pare a cem quilômetros por hora embriagado parou quase que instantaneamente com sua frente completamente recolhida e seu motorista a uma quadra a frente. O carro azul, desafortunado, inocente, indefeso, recebeu tudo do impacto. Rodopiou pelo menos umas cinco vezes até bater na vitrine e adentrar a loja de bebidas.
O fogo começou tão rápido que nem foi possível dizer o que exatamente o começou. O jovem balconista, que por milagre estava nos fundos da loja por apenas aqueles instantes, surgiu saltando dentre as leves chamas, abriu a porta do carro e retirou a mulher que estava desmaiada. O homem que dirigia balbuciava e balançava sua cabeça lutando para manter sua consciência. O balconista carregou a mulher para fora do carro, e a arrastou para longe da loja, enquanto o homem recobrava sua consciência e tentava se mover.
Neste momento toda a religiosidade de Paulo desapareceu. Toda consciência lógica e centrada que existia para analisar toda a sua deplorável vida, todos os seus erros e pecados sumiram no vazio de seus pensamentos. Tudo que sobrara em sua mente era a certeza do que tinha que fazer. Sentiu um frio percorrer sua espinha e ao mesmo tempo um calor preencher todo seu corpo. Sentiu-se jovem como nunca, pronto para enfrentar o impossível. Correu em direção ao carro, apanhou o motorista balbuciante que tentava lhe dizer alguma coisa estúpida e irrelevante. Agarrou-o com uma força que nunca teve e o retirou do carro, levando-o ao lado de sua mulher.
O balconista disse: “Ainda bem que os tiramos de lá, o tanque está aberto, deve explodir a qualquer momento!” ao mesmo tempo os balbucios do homem se tornavam mais concisos e formavam palavras entendíveis, mas apenas uma delas foi suficiente para que o coração de Paulo gelasse e empedrasse: “...filha...”
Sua mente não pensou, seu corpo agiu sozinho. Ele nem sabe o quão rápido foi capaz de chegar no carro. A menina de apenas oito anos estava caída ente os bancos atrás do motorista. Ela estava desacordada, seu corpo todo mole foi fácil de retirar de um espaço tão apertado. Conseguiu tirá-la carregando-a em seus braços com uma felicidade que já havia esquecido que era possível.
Não conseguiu chegar a mais de dois metros de distância do carro quando ele explodiu. O fogo alcançou o outro lado da rua, o balconista sentiu o deslocamento de ar, se desequilibrou e caiu. O fogo se recolheu sobrando um amontoado queimando.
O fogo do amontoado logo se extinguiu. Os bombeiros encontraram os restos queimados de Paulo, que estava encolhido indefeso. Nada puseram fazer a não ser move-lo como um saco de lixo amontoado, caído no meio do caminho. O corpo desgraçado e sem vida descobriu a pobre menina. Sua pele apresentava leves queimaduras, seu rosto se enrugava e lacrimejava enquanto gemia quase sem força. Ela ainda estava viva.